Reler princípios, renunciar a dogmas e procurar novos rumos: há sim espaço para mais!1 Tomás Timbane2 1. Introdução 2. Necessidade de reformar o Código de Processo Civil 3. Reler princípios e renunciar a dogmas 4. Procurar naovos rumos … 5. … e avaliar as reformas 6. Notas Conclusivas 1 Versão escrita da comunicação apresentada no dia 11 de Outubro de 2019 no I Colóquio do Direito Processual, organizado pelo Tribunal Supremo de Moçambique e pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal sob o tema “Simplificação dos procedimentos no Processo Civil: haverá espaço para mais?”. 2 Doutor em Direito, Assistente Universitário, Presidente do Conselho Universitário da Universidade Pedagógica de Maputo, Advogado e Membro da Corte de Arbitragem da CCI. 1. Introdução I. Em 2010, na apresentação do Código de Processo Civil Anotado3, decidi falar da Reforma do Código de Processo Civil4. Nessa altura, quando ainda estava fresca a última alteração ao CPC5 entendi abordar os aspectos que julguei adequados para um repensar do processo civil6. Estávamos a sair de uma alteração importante e que, na essência, visava corrigir algumas omissões ocorridas com a revisão de 2005 e adequar o CPC às alterações trazidas pela então nova Lei da Organização Judiciária7. Estava convencido que aquela era uma boa oportunidade – até porque juntamos operadores judiciários, académicos, estudantes e empresários numa mesma sala – para reflectirmos sobre o rumo que queríamos ou poderíamos dar ao processo civil, até porque a UTREL – hoje inexplicavelmente extinta8 – estava no seu auge e apresentava resultados importantes na reforma legal então em curso. Por essas alturas, também publiquei o livro Lições de Processo Civil9, que, tendo como destino principal os estudantes da Faculdade de Direito da UEM, procurou problematizar algumas das questões essenciais do processo civil. No mesmo período, a FDUEM introduziu a disciplina de Teoria Geral do Processo que, desde então, tenho gostosamente regido, procurando introduzir e estudar novos temas importantes no âmbito do direito processual. Nessa época, a FDUEM introduziu o método de Bolonha, que trouxe maus resultados, bem assim as universidades ou institutos que leccionam o curso de direito foram aumentando como cogumelos numa selva sem qualquer controle. II. Seguiram-se outras reflexões nacionais sobre o processo civil, designadamente no 1.º Congresso para a Justiça, onde vários profissionais participando no painel Falta de Prontidão da Justiça10 discutiram as causas da morosidade da justiça. Em Outubro de 2012, reflectindo sobre questões idênticas num Seminário sobre Os Desafios do Sistema da Administração da Justiça em Moçambique11, apontei algumas questões que poderiam ser objecto de debate e revisão. Entretanto, surgiram, depois disso, obras que se dedicam ao estudo do 3 ABDUL CARIMO MAHOMED ISSÁ/ISABEL GARCIA/NELSON JEQUE/TOMÁS TIMBANE, UTREL, Maputo, 2010. 4 O tema da minha apresentação tinha como título “Os Novos Rumos do Processo Civil em Moçambique”, que, em alguns pontos, aqui retomo com algumas actualizações. 5 V. Decreto-Lei n.º 1/2009, de 24 de Abril, 6 Importa sublinhar que estas reflexões, feitas depois de publicadas as alterações de 2009, precederam uma outra reflexão, feita em Dezembro de 2008 (Processo Civil de Moçambique: uma reforma necessária e urgente in https://www.verbojuridico.net/doutrina/2009/timbane_processocivilmocambique.pdf consultado no dia 10 de Outubro de 2019), quando não sabia o que faria o Governo depois de submetidas, pelo autor, as propostas que, depois, resultaram no Decreto-Lei n.º 1/2009, de 24 de Abril. 7 Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto. 8 A UTREL foi extinta pelo Decreto n.º 8/2013, de 10 de Abril. 9 Escolar Editora, Maputo, 2010. Esse livro, depois de muito anos e muitas reimpressões, encontrase na fase final de conclusão da sua 2.ª Edição. 10 Nesse 1.º Congresso, apresentei o tema Falta de Prontidão da Justiça na Perspectiva de um Advogado:Um problema da legislação, de recursos ou de vontade? 11 Comentários à intervenção de Filipe Sitoi, in ARLETE MATOLA/JOHANE ZONJO/SÉRGIO PADEIRO (Org.), Comunicações dos Seminários da Presidência da República, Gabinete de Estudos da Presidência da República, Maputo, 2012, pp. 196-208. processo civil e que poderiam ter algum impacto sobre uma eventual revisão, designadamente dos Juízes Luís Filipe Sacramento e Bernardo Bento Chuzuaio12, bem assim no prefácio do Código de Processo Civil Anotado e Comentado13 de Carlos Mondlane, encontrei-me ao lado de profissionais consagrados a reflectir sobre a posição em que se encontrava o processo civil em Moçambique. No entanto, salvo alterações pontuais à Lei da Organização Judiciária ocorridas em 2014 e 2018, que tiveram impacto no processo civil, nenhuma outra alteração foi feita ao processo civil, mas, entretanto, duas das mais importantes leis processuais – a Lei do Processo Administrativo Contencioso e a Lei dos Tribunais de Trabalho14 -foram objecto de alteração. Sobre a Lei da Organização Judiciária, salvo pequenas alterações, designadamente sobre a redução de férias judiciais para o mês de Janeiro15 e as transformações dos tribunais de primeira instância em tribunais singulares16, afastando-se os juízes eleitos na maioria dos casos, não houve alterações com impacto no processo civil. Mais recentemente, no 1.º Congresso dos Juízes Moçambicanos17, dissertei sobre “O Juiz e a Crise do Poder Judicial em tempos conturbados”, tendo José Manuel Caldeira abordado “Os Tribunais, a Economia e as Finanças”, onde falou da falta de celeridade e dos custos na economia e nas finanças causados pela inércia dos tribunais. De modo surpreendente, em plena campanha eleitoral, contrariando o que os outros candidatos apresentaram nos seus manifestos eleitorais18, o candidato presidencial do partido Frelimo, o Eng.º Filipe Nyusi, num encontro com académicos, apresentou a sua visão sobre “A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação”, trazendo uma contribuição relevante sobre a reforma da justiça. Importa considerar que quer o manifesto da Frelimo, quer os manifestos do MDM e da Renamo apresentaram propostas genéricas sobre a justiça, a que lhes falta a indicação de medidas concretas do que pode ser feito para uma melhor justiça. III. O mote deste painel questiona se haverá espaço para mais na simplificação dos procedimentos do processo civil. Numa certa perspectiva, podese pensar que a conclusão dos organizadores é a de que muito foi feito na simplificação de procedimentos do processo civil em Moçambique, mas como a 12 Direito Processual Civil – Acção Executiva e Recursos, Imprensa Universitária, Maputo, 2014. 13 Escolar Editora, Maputo, 2014. A introdução deste livro contém, para além das minhas, outras reflexões sobre a necessidade de reforma do processo civil de AUGUSTO RAÚL PAULINO, Da necessidade de um Código de Processo Civil Anotado e Comentado, pp. 19-21. 14 Apesar de ser uma lei orgânica dos tribunais de trabalho, tem um elevado conteúdo processual, procurando, em muitas das suas disposições, trazer uma actualização do Código de Processo do Trabalho. 15 V. art. 27 da LOJ na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 11/2018, de 3 de Outubro. 16 V. art. 17 da LOJ na versão dada pela Lei n.º 11/2018, de 3 de Outubro. 17 O Congresso, realizado nos dias 2 e 3 de Maio de 2019, teve como lema “O Poder Judicial em tempos de crise: Estatuto e Modernização da Justiça”. 18 (V. http://www.frelimo.org.mz/frelimo/index.php?option=com_content&view=article&id=248:manif esto-eleitoral-dafrelimo& catid=91&Itemid=939&tmpl=component&print=1&layout=default&page=, consultado no dia 8 de Outubro de 2019), https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2019/09/renamomanifesto- eleitoral-2019.html, consultado no dia 8 de Outubro de 2019 e https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2019/09/mdm-.html (consultado no dia 8 de Outubro de 2019). situação não melhorou, questiona-se se ainda haveria espaço para mais simplificações. Como disse na sessão de abertura deste Colóquio o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal19, ao ser escolhido o tema da simplificação de procedimentos, o que se pretende discutir, em síntese, é o equilíbrio, sempre difícil e precário, entre as necessidades de qualidade e certeza no funcionamento concreto da justiça, por um lado, e a celeridade e eficácia do sistema, por outro lado. Refere ainda que a questão que, muito impressivamente, este tema traz, é o do equilíbrio entre um caminho continuado de simplificação e a sua sustentação na procura de uma boa tomada de decisão. Como julgamos poder demonstrar, as alterações feitas não permitem que se possa celebrar que estamos no caminho da simplificação, muito menos que estão adequadas para um melhor processo civil. A simplificação que timidamente foi feita em 2005, bem assim em 2009, permitem-nos dizer que ainda há um campo muitíssimo vasto de simplificação de procedimentos do processo civil. 2. Necessidade de reformar o Código de Processo Civil I. O Código de Processo Civil é um dos mais importantes e sensíveis instrumentos normativos de qualquer ordenamento jurídico e de Moçambique em particular. Não só pela sua natureza subsidiária e inspiradora dos demais direitos processuais, mas também pelo seu impacto prático tendo em conta a densidade dos conflitos a que primacialmente se aplica. Os procedimentos nela constantes, tem, pois, por isso, um enorme impacto na prestação da justiça. Como já referi20, as regras constantes dos nossos códigos têm nos mostrado que o recurso a tribunal e o uso dos mecanismos processuais de defesa dos direitos das partes, tem sido, muitas vezes, usados como forma de prejudicar os direitos e interesses legítimos da contraparte21. No âmbito do processo civil não é difícil indicar, também, que o próprio Código é propiciador da crise a que a justiça cível chegou. Por aí se poderia seguir, sempre a ilustrar que o formalismo processual, quer na acções declarativas, quer nos recursos é, injustificadamente, demasiado denso e desnecessário e permite que seja usado para prejudicar os direitos e interesses das partes e, em último lugar, o maior interesse da justiça. 19 V. ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA, Discurso de abertura do I Colóquio de Direito Processual ( https://www.stj.pt/wpcontent/ uploads/2019/10/discurso_p_abertura_coloquio_penal_maputo_10out2019.pdf, consultado no dia 10 de Outubro de 2019). 20 Uma perspectiva sobre o processo civil moçambicano, in CARLOS PEDRO MONDLANE, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, 2.ª Edição, Escolar Editora, Maputo, 2016, p. 25. 21 Impugna-se uma decisão judicial porque sabe-se que o processo judicial ficará pendente por muito tempo. Apresenta-se uma reclamação para provocar uma decisão que seja susceptível de recurso. Usam-se todos os expedientes dilatórios para evitar que a decisão seja proferida. O juiz deixa de proferir uma decisão porque o processo é complexo, por implicar um aturado estudo e uma ponderosa reflexão. Profere-se uma decisão sem sustentação ou com uma fundamentação deficiente, apenas para justificar as metas, sabendo-se que em caso de recurso o processo vai levar muito tempo até que seja decidido. II. Para além dos factores económicos e humanos22 que tem contribuído para a crise da justiça cível, questiona-se, também, se os tribunais estarão a responder aos problemas resultantes do crescimento exponencial da litigiosidade, como o que ocorre nos casos dos conflitos de consumo, de terras ou da família. Com o aumento de instituições que leccionam o Curso de Direito, tem havido um crescente aumento de Licenciados em Direito e, consequentemente, um elevado número de magistrados (neste caso aparente) e advogados23. Se até há bem pouco tempo reclamava-se contra a ausência de recursos humanos, havendo nos últimos tempos um evidente aumento de técnicos formados, pergunta-se se esse aumento tem sido acompanhado pelo apetrechamento dos tribunais. No entanto, os meios postos à disposição dos tribunais e das procuradorias não tem sido suficiente. III. A preparação técnica dos profissionais forenses, desde magistrados a mandatários judiciais, formados com a maior pressa possível, não tem sido eficiente. Ainda há poucos dias, nos 25 Anos da Ordem dos Advogados de Moçambique, abordando Os Desafios da Ordem dos Advogados de Moçambique, disse que a Ordem dos Advogados deveria não só valorizar, como estar na linha da frente da especialização, pois isso vai contribuir para a prestação de melhores serviços jurídicos. Disse, igualmente, que o mesmo se aplica à magistratura pois a pouca experiência de trabalho, a pouca formação intelectual de base, a ausência de condições de trabalho e a falta de especialização dos magistrados, não tem contribuído para uma justiça melhor. Por isso, entendo que a jurisdição civil deveria estar mais especializada, não só nos litígios de natureza comercial, mas em litígios de família, terras, arrendamento, etc. Com efeito, mais do que criar secções especializadas nestas matérias – e continuar a transferir juízes de forma indistinta de uma secção para outra – deveria especializar-se o juiz, que, assim, estaria melhor capacitado para dirimir litígios mais rapidamente. Se continuarmos com a actual situação – de juízes criminais ou laborais notadamente competentes – que vão às secções cíveis e comerciais impreparados, continuaremos a ter maus resultados, dando a evidente ausência de especialização. Não ignoro, porém, a questão da participação emolumentar que, podendo condicionar a especialização, será objecto de abordagem mais adiante. IV. É, pois, mais do que evidente a necessidade de uma reforma profunda ao Código de Processo Civil, até porque muitas normas substantivas tem sido objecto de uma profunda alteração, como é o caso do Código Comercial, da Lei da Família, da projectada revisão da Lei das Sucessões e das sucessivas revisões da Legislação sobre Terras. Salvo o regime da parte geral do Código Civil e das obrigações, todos 22 Citando as sempre actuais palavras de CARNELLUTI, as causas da ineficiência da justiça radicam em três pontos fundamentais: a lei processual, as estruturas judiciárias e, acima de tudo, o homem que opera o processo. 23 Desde 2000 foram formados mais de 300 Juízes e Magistrados do Ministério Público, mas até ao momento só existem 370 juízes (Outubro de 2019). A Ordem dos Advogados tem inscritos 1800 advogados, a maior parte dos quais formados nos últimos 10 anos. os livros do Código Civil já mereceram uma profunda alteração, pelo que a lei instrumental, não pode deixar de o fazer. Ainda assim, à excepção da legislação processual aduaneira (Contencioso Aduaneiro), todas as normas que constituem o direito processual, já foram objecto de alteração, designadamente a Lei do Processo Administrativo Contencioso, a Lei dos Tribunais do Trabalho e, actualmente, o Código de Processo Penal e o Código de Execução de Penas. Se é assim, o Código de Processo Civil não pode estar alheio a este movimento reformador, até porque pode ser ultrapassado pelas demais normas processuais, perdendo, assim, o seu carácter subsidiário. Ainda que o candidato Filipe Nyusi não o tenha referido na sua apresentação sobre “A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação”, muitas das propostas para debate que apresentou, só farão sentido com uma reforma do Código de Processo Civil, designadamente “a eficiência, a celeridade e a oportunidade”24, as quais “tornam as decisões justas, pois, de contrário, não haverá justiça”25, pois “a justiça não é feita quando uma empresa não consegue, em tempo útil, cobrar um crédito do qual depende o seu equilíbrio financeiro e social”26. V. É, pois, necessário um Código Processual Civil moderno e que contribua para um bom poder jurisdicional, rápido e justo, o que contribuirá para o desenvolvimento económico, protegendo a propriedade e o investimento, estimulando o desenvolvimento e a difusão da tecnologia e contribua para a paz social. Um novo Código Processual Civil não deve perder de vista aos avanços que a economia está a ter, muito menos aos lamentos vindos da sociedade. O exemplo das tecnologias de informação e das redes sociais ilustram estas transformações. Desde logo as facilidades que têm sido trazidas pelos meios informáticos não têm sido aplicadas pela justiça. Por exemplo, basta comparar muitas inovações entretanto ocorridas, os investimentos que têm sido feitos ao longo dos últimos anos, as maravilhas do sistema bancário e as condições de trabalho dos nossos tribunais e procuradorias, os métodos arcaicos de pagamentos dos encargos judiciais27, as máquinas, algumas do século passado, em uso nos tribunais e o (não) uso dos meios informáticos28, para perceber que a distância entre a sociedade, a economia e a justiça é muito grande. 24 A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação, cit., p. 8. 25 A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação, cit., p. 8. 26 A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação, cit., p. 8. 27 Os pagamentos só podem ser feitos com uma guia, que deve ser levantada no tribunal, seguindose o pagamento no Banco e a consequente devolução ao tribunal, quando podia, com um simples cálculo aritmético, determinar-se o valor do encargo e enviar, por fax ou qualquer meio de prova, o comprovativo desse pagamento ao tribunal. 28 Basta espreitar os cartórios dos tribunais, as secretarias das procuradorias e os gabinetes da polícia de investigação criminal para ver o estado em que se encontram os poucos computadores que por lá andam. 3. Reler princípios e renunciar a dogmas … I. Na verdade, como referimos29, o processo civil está, em diversos quadrantes, à busca da sua identidade e de construção de um modelo fiel às novas realidades sociais, mas é difícil identificar com clareza os caminhos do futuro dos sistemas processuais. Como diz CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO30, caminhos praticamente no escuro, até porque as transformações sócio-económicas da civilização ocidental, com reflexos nas instituições políticas de cada nação, não foram ainda delineadas e definidas em seus contornos de modo satisfatório e suficiente para fornecer ao estudioso do processo as linhas e os rumos de uma evolução desejável. Os exemplos de Portugal31 e do Brasil32, países mais próximos pela língua, bem assim as soluções existentes em alguns países da América Latina (Argentina, Uruguai e Chile)33, podem ser apontados como uma luz para os caminhos que devemos seguir. II. É que tal como tem sido feito em muitos países, na procura de novos rumos do processo civil, é preciso reler princípios e renunciar a dogmas, o que pode permitir encontrar um novo rumo do processo civil, tendo em conta que o Código em vigor em Moçambique ainda é o Código de Alberto dos Reis de 1939, que apesar da sua perfeição e rigor, foi projectado para uma realidade diferente da do nosso pais, em pleno período de autoritarismo político e de total desrespeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, e que, mesmo em Portugal, já foi objecto de diversas alterações. III. Muitas vezes, a decisão de investir num determinado sector (ou país) pressupõe saber se, em caso de incumprimento, a justiça funciona ou não rapidamente ou, mesmo que seja lenta, em quanto tempo. Quando se pretende decidir se se instaura uma providência cautelar pergunta-se, sempre, sobre os encargos judiciais, até porque isso pode facilitar um acordo, mas muitas vezes nunca se pode, sequer, fazer um cálculo, porque os critérios de cálculo dos encargos judiciais são obscuros. 29 Uma perspectiva sobre o processo civil moçambicano, in CARLOS PEDRO MONDLANE, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, cit., p. 26. 30 Nova Era do Processo Civil, 2.ª Edição, revista e aumentada, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 11. 31 Relativamente ao novo direito processual civil português, encontram-se entre outros, PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2018 e várias edições dos Volumes 1 e 2 de JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Coimbra. 32 Sobre o actual modelo processual civil brasileiro, uma breve descrição pode ser encontrada em CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO/BRUNO VASCONCELOS CARRILHO LOPES, Teoria Geral do Novo Processo Civil, 3.ª Edição, revista e atualizada, Malheiros, São Paulo, 2018, pp. 38-40 e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Comentários ao Código de Processo Civil I, Saraiva, São Paulo, 2018, pp. 25-55. 33 É de destacar o Código de Processo Civil Modelo para a América Latina dos anos 80 e os estudos que tem sido realizados pelo seu autor, o Instituto Iberoamericano do Direito Processual (www.iibdp.org), fundado em 1957 em Montevideu em homenagem ao processualista Eduardo J. Couture. A previsibilidade é importante e as pessoas pretendem uma informação muito simples e clara sobre o recurso a tribunal34: em quanto tempo a decisão será proferida, quais os encargos judiciais que deverão ser suportados e quais os honorários que deverão ser exigidos35. Isso não tem sido possível porque a justiça está alheia a essas questões que, bem respondidos, podem contribuir para uma maior previsibilidade, menores riscos e mais confiança. Como tenho dito e já estou com a voz rouca que ninguém parece ouvir36, o regime de custas, apesar do actual sistema informático que permite uma rápida contagem, não é claro nem transparente, não se sabendo, muitas vezes, as razões do pagamento, ainda que o método do cálculo das mesmas tenha melhorado. Permitam-me, teimosamente, repetir-me: ocorre, muitas vezes, um complexo sistema com uma uma tramitação arcaica e burocrática o que, aliado a um quase desconhecimento desse sistema, propicia um regime confuso e injusto. Ainda que o método de cálculo tenha melhorado, entendo que este regime de custas é inconstitucional, por permitir que os juízes tomem decisões em seu proveito, o que põe em causa questões relativas à sua imparcialidade. Ainda recentemente, um amigo disse que a confusão entre alçada e competência trazida pela nova Lei dos Tribunais do Trabalho, pode levar a que os juízes interpretem o art. 6 no sentido de que as decisões aí proferidas são irrecorríveis porque o valor da causa não excede a alçada do tribunal de que se recorre, para garantir que o processo termine rapidamente e sejam, definitivamente, pagas as custas. Considerando, pois, que há um evidente conflito de interesses, este sistema de custas e o regime de participação emolumentar deveriam ser revogados e estabelecer-se um regime de custas claro, directo, desassociado da remuneração dos operadores judiciários, permitindo não só que os operadores de igual estatuto tenham iguais condições remuneratórias, como os mesmos sejam adequadamente remunerados. IV. No actual regime do nosso CPC, não é possível prever antecipadamente a duração de um processo, muito menos a realização dos actos processuais mais importantes, designadamente a citação, a audiência preliminar, o despacho 34 Sobre a previsibilidade, v. FILIPE NYUSI, A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação, p. 7, pois, segundo refere, um bom sistema de justiça deve garantir segurança jurídica e esta só é alcançada se ela for acessível, previsível, célere, oportuna e credível. 35 Os honorários devem ser fixados considerando o tempo gasto, a complexidade do assunto, a importância do serviço prestado, o lugar da prestação de serviços, fora ou no domicílio profissional do advogado, a praxe do foro sobre trabalhos análogos, as posses dos interessados e o resultado obtido (v. art. 66 do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 29 de Setembro). 36 As Custas Judiciais e o Direito ao Acesso à Justiça, comunicação apresentada no dia 14 de Março de 2012, na Conferência Nacional sobre o Acesso à Justiça em Moçambique, organizada conjuntamente pelo Ministério da Justiça e Liga dos Direitos Humanos. Sobre este regime de custas, FILIPE NYUSI, A Reforma da Justiça, Combate à Corrupção e Boa Governação, cit., p. 17, referiu que o regime de custas judiciais para além de inacessível pode nos conduzir à exclusão dos beneficiários, a começar pela desigualdade de tratamento entre os próprios operadores de justiça. Uma vez que parte das custas vai para o complemento salarial dos operadores de justiça, em tribunais onde não se fazem custas (secções criminais e tribunais pouco movimentados), há magistrados da mesma categoria que auferem salários diferentes. Não pode deixar de surpreender esta posição, sobretudo tendo em conta que existe uma proposta de revisão do Código de Custas Judiciais liderada pelo Ministério da Justiça, mas que, não sabe bem porquê, continua moribunda. 8 saneador ou a decisão final. Tendo em conta a necessidade de uma justiça mais rápida, o Brasil introduziu em 2015 medidas que merecem uma especial referência: antes da citação, as partes são convocadas para uma audiência prévia de tentativa de conciliação37; a lei exige que, em regra, os processos sejam atendidos de acordo com a ordem cronológica de conclusão38. Para além disso, em regra, deve-se afixar no cartório, a lista dos processos aptos a julgamento, o que, considerando que as audiências são, em regra, públicas, ajuda na credibilização e transparência (necessárias) da justiça. Já Portugal tem soluções também interessantes: uniformizou as formas de processo, tendo passado a existir uma forma de processo declarativo, tendo se revogado o processo sumário; na audiência preliminar, agora designada por audiência prévia, para além das tradicionais funções, o juiz marca, com o acordo das partes, as datas da audiência final e das diligências que sejam necessárias realizar. No âmbito das providências cautelares pode-se dispensar a instauração da acção principal quando a providência alcance os efeitos da acção e inverte-se o ónus da prova. No direito recursal, para além da uniformidade dos recursos, institui-se o princípio da dupla conforme, nos termos do qual se uma decisão for confirmada em segunda instância, já não se admite recurso para o tribunal superior. É, assim, amplo o campo de intervenção do legislador, que deverá ter operadores judiciários de espírito aberto para reler os princípios e renunciar aos dogmas existentes, se o objectivo for o de encontrar um processo civil moderno e eficiente. 4. Procurar novos rumos … I. É ponto assente que a partir do século XIX a ciência processual preocupou-se de forma intensa com uma tendência garantística, a qual avolumouse na segunda metade do século XX, tendo levado o processo a profusão de princípios, garantias tutelares e dogmas que foram concebidos para uma determinada realidade, agravando a existência de formalismos que atrasam a máquina, abrindo flancos para a malícia e a chicana39. Ao longo do tempo, tem havido tentativas de encontrar novos rumos, através de propostas que implicam o abandono de velhos dogmas herdados ao longo de tradições seculares. É o caso da abertura da justiça à efectivação dos direitos colectivos (acção popular)40, a tutela 37 No caso de Portugal, a realização de uma audiência de tentativa de conciliação, só ocorre nos casos de divórcio litigio (art. 931.º do CPC). 38 É curioso que na versão original do texto, impunha ao juiz o dever de atendimento cronológico, tendo em conta o princípio que norteou a revisão de 2015. No entanto, ainda antes da entrada em vigor do CPC, no âmbito de críticas dos magistrados à solução legal, introduziu-se essa regra, comportando excepções que, em geral, acaba tornando numa faculdade do juiz no atendimento dos processos. Para mais considerações, v. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Comentários ao Código de Processo Civil I, cit., pp. 132-133, em comentário ao art. 12.º. 39 CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Nova Era do Processo Civil, 2.ª Edição, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 11. 40 V. arts. 78 e 81 ambos da CRM, art. 21 da Lei do Ambiente e art. 17 da Lei da Defesa do Consumidor, recentemente adjectivados pelo art. 26.º/A do CPC no âmbito da determinação da legitimidade das partes. dos menos favorecidos41, a protecção e os efeitos da união de facto42, o processo de divórcio litigioso e partilha de bens43, a desconsideração da personalidade jurídica44 e a tendência de relativização do caso julgado, de que podemos dar exemplo o recurso extraordinário de suspensão e anulação de sentenças manifestamente injustas ou ilegais45. II. Por exemplo, no âmbito do princípio do inquisitório, nada impede que haja uma outra definição do âmbito de actuação dos principais sujeitos do processo, designadamente do juiz, até porque o seu principal papel é o de procurar obter a justiça, a mesma que é procurada pelo processo civil. Se é verdade que o tribunal deve continuar a resolver os litígios apenas quando os mesmos são introduzidos pelos interessados, nada impede que se reequacione a possibilidade de uma maior intervenção do juiz sobre os factos a alegar e sobre os meios de prova a utilizar. Se na fase dos articulados, é às partes que deve incumbir a tarefa de levar os factos ao processo, verdade é que na instrução e na determinação do direito aplicável ao litígio, a intervenção do juiz deve ser mais intensa. Justifica-se, por isso, um repensar do princípio da cooperação relativamente à conduta de todos os intervenientes processuais, permitindo um dever de colaboração das partes com o tribunal (já existente), mas também um específico dever do tribunal para com as 41 Através dos processos de menor expressão económica (pequenas causas), que em Moçambique ainda não ganhou expressão, mas não parece ser difícil acreditar que a tendência venha a ser essa. 42 V. art. 202 da LF. Um dos problemas mais complexos da previsão legal das uniões de facto, é a possibilidade de reconhecimento judicial da união de facto e da cumulação desse reconhecimento dessa união com a partilha de bens. Em sentido positivo, defendemos a possibilidade dessa cumulação. Nesse âmbito, na projectada revisão da Lei da Família, o autor do Projecto toma posição, ao admitir o reconhecimento judicial nos casos de morte de um dos sujeitos da união ou de ruptura da união. Entendemos que ainda se pode ir mais além, naqueles casos em que havendo estando preenchidos os requisitos da união de facto, um dos sujeitos não pretenda faze-lo. É verdade que contra esta possibilidade pode-se levantar o argumento de que o reconhecimento administrativo da união depende da vontade de ambas as partes, mas tendo em conta os interesses que se pretendem proteger com o reconhecimento judicial em caso de morte e ruptura, não repugna que o legislador o admita. 43 Não se compreende o actual sistema de partilha de bens nos casos de divórcio litigioso, uma vez que a partilha só ocorre depois do trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, com todas as consequências que daí resultam, tendo em conta a morosidade processual. Neste âmbito, bem pode optar-se por um sistema que admita o divórcio por mútuo consentimento sem partilha de bens, desde que haja acordo entre os cônjuges sobre os alimentos e regulação do poder parental, ficando para um processo judicial a discussão da partilha de bens. 44 Não houve, ainda, por parte do legislador moçambicano qualquer tomada de posição sobre a adjectivação dos direitos dos credores demandarem os associados em caso dessa desconsideração, mas mesmo assim não parece haver dúvidas da possibilidade de instaurar-se uma acção contra os associados, mesmo que haja limitação da responsabilidade ao património da pessoa colectiva (art. 87 do Cód. Comercial). Já no Brasil, país com desenvolvimentos importantes nesta área, introduziu-se não só a própria acção de desconsideração, mas o incidente da desconsideração da personalidade jurídica (art. 133.º e ss. do CPC), que tanto pode ser deduzido pelo Ministério Público, como pela parte interessada, o qual pode ser apresentado em todas as fases do processo, cuja decisão deve ser proferida antes da decisão final, tornando-se ineficaz, caso seja julgada procedente, em relação ao requerente, a alienação ou oneração de bens que tenham sido realizadas. Tem também interesse a introdução do amicus curiae (artig. 138.º do CPC). 45 Recurso esse recentemente regulado nas alterações ao CPC trazidas pelo Decreto-Lei n.º 1/2009, de 24 de Abril (v. arts. 782.º/A, 782.º/B e 782.º/C). partes, para o esclarecimento de dúvidas e informação sobre aspectos de direito ou de facto que as partes não tomaram em conta nos seus articulados. O juiz deve poder fazer sugestões para afastar eventuais deficiências, conservando as partes a sua liberdade de actuação, sendo o papel do juiz de mera prevenção às partes, sem quebra da sempre desejada imparcialidade. Relativamente aos factos instrumentais, justifica-se que ao juiz se admita uma inquisitoriedade mais ampla, permitindo-se que possa indagar mesmo que tal não resulta da posição de uma das partes. III. Impõe-se, actualmente, de forma mais intensa, o dever de cooperação de todos os intervenientes no processo, através de um especial dever de correcção e urbanidade nas relações entre advogados, magistrados e outros funcionários judiciais46, até porque não há hierarquia nem subordinação entre magistrados judiciais, do Ministério Público e advogados, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos47. Por isso, tendo em conta esse dever especial de respeito, aqueles que se afastem do respeito devido às instituições ou ao tribunal devem ser advertidos pelo juiz, que pode retirar-lhes a palavra e mandar riscar as expressões ofensivas. Para além disso, o dever de cooperação se desdobra para as partes e seus mandatários no dever de comparência e no dever de informação. Este princípio ganhou uma nova dimensão, pois, para evitar os adiamentos de qualquer audiência judicial que impliquem a presença dos mandatários, os juízes devem providenciar pela marcação do dia e hora da sua realização, mediante prévio acordo dos mandatários judiciais, devendo para o efeito, encarregar a secretaria de realizar os contactos necessários, fixando prazo para tal (art. 156.º/A do CPC)48. Trata-se de uma disposição pouco cumprida, mas que deve ser celebrada, acrescendo a possibilidade de marcação de todas as diligências até ao final do processo na audiência preliminar. IV. Ainda recentemente, o Venerando Presidente do Tribunal Supremo49 criticou os juízes que se atrasam aos julgamentos e não apresentam justificações, 46 Vd. Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 11 de Março [v. art. 39, n.º 1 alínea d)], no Estatuto da Ordem dos Advogados (art. 88) e no art. 112, n.º 1, alínea d) da Lei Orgânica do Ministério Público. Para as partes, o dever de correcção e urbanidade pode, usando as palavras de ANTÓNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA/ADA PELLIGRINI GRINOVER/CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, 31.ª Edição, revista e ampliada, Malheiros, São Paulo, 2015, p. 77, sintetizar-se da seguinte forma: é reprovável que as partes se sirvam do processo faltando ao dever de verdade, agindo deslealmente e empregando artifícios fraudulentos. O processo é instrumento posto à disposição das partes para a resolução do conflito de interesses que lhes opõe, mas sobretudo para a pacificação geral na sociedade e para a actuação do Direito. 47 V. art. 59, n.º1 do Estatuto da Ordem dos Advogados. Isto deveria implicar, por exemplo, que os advogados devam entrar na sala juntamente com os magistrados e não, como hoje se assiste, a que à entrada do juiz e do Magistrado do Ministério Público, o advogado tenha a obrigação de se levantar. Do mesmo modo, já não faz sentido que a bancada de que dispõe os advogados esteja numa posição abaixo da bancada do juiz, dando a ideia de supremacia do juiz perante o advogado ou que as partes, sejam colocadas no tradicional “banco dos réus”, com a limitação que isso representa. 48 No processo de consulta para a marcação das diligências, os mandatários judiciais devem, também, agir de boa-fé [arts. 72 e 85, n.º 1, alínea c) ambos do EOA] e comunicar qualquer impossibilidade de participação numa audiência previamente marcada, justificando, no entanto, a falta cometida. 49 No discurso de tomada de posse dos membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial. 11 referindo que, para além de revelar falta de carácter, esse comportamento é uma flagrante violação dos deveres éticos. Intervindo no 1.º Congresso dos Juízes Moçambicanos50, disse que “quem quer ser digno e respeitado, tem de se fazer respeitar”, uma vez que “só é digno e respeitado quem concilia os princípios que norteiam a sua acção com uma prática e postura congruentes”. Sendo isso evidente, creio que mais do que lamentar, temos de avançar um pouco mais: que tal se for obrigatório que o juiz coloque, à vista de todos, as datas, horas e tipo de diligências que devem ser realizadas num determinado período? Que tal obrigar-se o juiz a fixar, na audiência preliminar, o calendário das fases processuais subsequentes, designadamente a proferição do despacho saneador, as reclamações, decisões, a abertura da instrução e a audiência final? Sei que há magistrados que nunca marcam de forma concertada as audiências violando a lei, alegando, muitas vezes, que esse agendamento concertado perturba o funcionamento normal do tribunal. Que tal impor-se uma penalização ao juiz que não cumpre essa imposição, atrasa ou falta injustificadamente, até com o apoio dos advogados que, com o cartório, iriam certificar-se do atraso ou da ausência do juiz? Ainda esta semana, recebi uma nota, supostamente um despacho, dizendo que a audiência tinha sido adiada por ordem verbal de um magistrado porque se encontrava doente. Já imaginaram um advogado a comportar-se dessa forma? Já imaginaram um advogado a atrasar-se mais do que 15 minutos e apresentar-se a uma audiência estando o juiz a espera que cheque o advogado? A pergunta que se coloca é simples: se um advogado tem regras, prazos e obrigação de justificar fundadamente as suas faltas e ausências, porque não se deve impor o mesmo ao juiz? Porque ele é um órgão de soberania? Não, o juiz não é um órgão de soberania, é membros do tribunal, esse sim, um órgão de soberania, o que, bem vistas as coisas, acarreta inúmeras responsabilidades, uma das quais é o respeito das regras éticas e deontológicas. V. Como qualquer outra área produtiva, a justiça produz um serviço consumido pela sociedade e pelos agentes económicos nas suas actividades. Esse produto deve ser, então, oferecido com qualidade, ser acessível e de forma muito rápida. O consumidor tem o direito à protecção dos seus interesses, impondo-se a lei nas relações contratuais entre diversos consumidores, aplicando-se a lei, com recurso ao princípio da igualdade, lealdade e boa-fé. Justifica-se, assim, um novo repensar dos operadores judiciários e a reformulação de todo o processo civil. Mas essa tarefa deve obedecer um programa delineado e articulado: trabalho faseado, escalonado e distribuído por etapas, implicando, por um lado, a melhoria da sistemática do Código, permitindo que qualquer um que o consulte possa percorrê-lo com destreza, sem dispersão de matérias, sejam usadas formas verbais mais simples, sempre no presente, o que vai facilitar uma adequada interpretação51. 50 O Juiz e a crise do Poder Judicial em tempos conturbados. No mesmo sentido, CÂNDIDA PIRES, Os princípios do processo civil e a sua força autoreformadora, Seminário sobre a Reforma do Processo Civil e a Lei da Organização Judiciária, FDUEM, Maputo, 2008. Comparando a legislação anterior a 2009, constata-se os tempos verbais agora são usados no presente do indicativo, o que implica que todo o Código seja reformulado, para que haja uma linguagem coerente, sempre no presente do indicativo, de acordo, até, com a técnica legislativa que está a ser actualmente usada pelo legislador moçambicano. Já antes reclamamos contra a ausência de um plano de trabalho, que poderia indicar os aspectos que justificavam mudanças e contra a ausência de um debate público entre os operadores judiciários, o que impedia que falássemos de uma reforma integrada e coerente. O trabalho de legística feito pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária e pela Unidade Técnica de Reforma Legal entre finais de 2003 e princípios de 2005, pode servir de referência para a reforma do processo civil, até porque a maior parte dessas propostas continua, por razões que se desconhecem, a aguardar a apreciação e o pronunciamento dos órgãos de decisão política52. VI. Compreende-se, assim, que haja necessidade de ser preparada uma reforma, através de um trabalho de pesquisa, avaliação das alterações feitas em 2005 e 2009, auscultação e debate público junto dos operadores judiciários para finalmente, ser elaborado um Código que esteja adaptado à realidade do país e à Constituição de 2004. Pretende-se adoptar um código que responda à preocupações de modernidade, simplificação e agilização dos procedimentos, mas também que possa tomar em consideração a realidade social de Moçambique, pois uma alteração pontual para além dos inconvenientes do método de introdução de alterações ao Código em vigor, permite que a numeração dos artigos seja afectada, pondo em causa, algumas vezes, referências remissivas. VII. A experiência do direito arbitral pode apontar os caminhos do que se pretende numa justiça moderna e expedita. Sem querer discutir a cada vez maior arbitrabilidade de litígios – um tema polémico, até porque uma boa parte da magistratura entende que mais do desjudicializar os litígios, o legislador deveria melhorar os tribunais e dar-lhes as condições necessárias para serem mais rápido e eficientes -, verdade é que as regras da arbitragem permitem previsibilidade, celeridade e flexibilidade. Se é ponto assente que as regras processuais são, para além das questões humanas e financeiras, um dos pontos essenciais para o estado a que a nossa justiça chegou, nada mais do procurar soluções que permitam alcançar mais rapidamente a justiça, sobretudo a que é feita pelos tribunais. 5. … e avaliar as reformas I. Um dos aspectos que tem justificado um maior apelo para um novo processo civil é a morosidade que provoca graves problemas e distorções em 52 Para mais considerações sobre a reforma da justiça e do trabalho desenvolvido a esse nível pelo CFJJ/UTREL, pode ver-se JOÃO CARLOS TRINDADE, Constituição e Reforma da Justiça: um projecto por realizar, in Desafios para Moçambique, IESE, Maputo, 2010, pp. 243 e ss. Como igualmente referiu RUI BALTAZAR, in Prefácio no nosso A Revisão do Processo Civil, p.5, ao avançar para alterações desata dimensão e calibre, há que desenhar com rigor estratégias e prioridades legislativas, ponderar cuidadosamente sobre o que deve proceder o quê, para minimizarmos o risco de produzir legislação que a breve trecho se mostre desadequada e a carecer de novos ajustamentos, ofendendo assim um certo nível de desejável estabilidade do direito, se é que não mesmo o princípio mais importante da sua previsibilidade. diversas áreas. Como disse TROCKER53, a justiça realizada morosamente é sobretudo um grave mal social; provoca danos económicos (imobilizando bens e capitais), favorece a especulação e a insolvência, acentua a discriminação entre os que têm a possibilidade de esperar e aqueles que, esperando, tudo têm a perder. Um processo que perdura por longo tempo transforma-se também num cómodo instrumento de ameaça e pressão, uma arma formidável nas mãos dos mais fortes para ditar ao adversário as condições da rendição. No âmbito do processo civil, pelo menos até 2009, havia uma tendência reformista, mas desde então nada mais se fez. Mesmo assim, pode-se questionar se as alterações feitas em 2005 e 2009 têm contribuído para a desejada celeridade processual. Como temos defendido, é necessário fazer um trabalho de avaliação do trabalho feito, afinal não se pode mudar com base em percepções54. É importante saber se as alterações feitas têm obtido aceitação, quais são as razões para eventuais resistências e o que deve ser feito, pelo menos, ao nível da reforma legal para ter leis que permitam obter decisões rápidas e justas, melhorando a justiça através do processo. II. Em todo o caso, justifica-se a necessidade de retirar da actual legislação todas as potencialidades que oferece, tendo sempre em vista uma decisão em prazo razoável. Para além disso, a necessidade de uma estabilidade das soluções legais, impõe que a reforma em perspectiva seja devidamente ponderada, evitando-se a tendência de reformar ao sabor da inspiração do momento e das pessoas. A função do processo é permitir a fruição do direito material pelo seu titular. Qualquer instituto processual deve ter esse paradigma como base, sob risco de negar ao processo o sentido de sua existência, pelo que é inadmissível que processos se desenrolem por anos, e muitas vezes por décadas. Essas aberrações, antes de garantiram uma suposta certeza jurídica sobre o titular ou sobre os limites do direito material, garantem a inutilidade do processo. 6. Notas Conclusivas I. Depois de o processo civil ter sido olhando como autónomo, os processualistas vêm-no mais como instrumental, não se dando apenas enfoque à ideia de que o processo é mero instrumento do direito material, mas também um instrumento para que a jurisdição alcance os seus objectivos sociais, jurídicos, políticos, económicos, o que pode permitir que a jurisdição cumpra, realmente, a sua missão constitucional de estabelecer uma justa e harmoniosa convivência social55. Pretende-se, assim, que para além de um processo instrumental, se vá no sentido de um processo utilitário, com resultados úteis aos que dela carecem, que seja mais ousado e inovador para encontrar as melhores respostas á situação crítica que vive a administração da justiça no nosso país56. É que o direito processual não pertence exclusivamente às complexas especulações do processualista: é antes de tudo um instrumento democrático que precisa ser útil à 53 Processo Civile e Costituzione, Giuffré, Milão, 1974, pp. 276-277. 54Podem encontrar-se alguns comentários sobre os passos a seguir em RUI BALTAZAR, in prefácio no nosso A Revisão do Processo Civil, FDUEM, Maputo, 2010, pp. 5-6. 55 V. art. 212 da CRM. 56 RUI BALTAZAR, in prefácio no nosso A Revisão do Processo Civil, p. 5. sociedade em geral e às pessoas que o utilizam para resolver determinado caso concreto, tendo em conta que se pretende um Código “legitimado, democrático, ao serviço da cidadania e que reflicta a diversidade cultural moçambicana, nos termos da Constituição.”57 II. Podemos, em conclusão, dizer que mais do que reflectir se haverá espaço para mais na simplificação de procedimentos, devemos lutar por uma reforma profunda do processo civil, relendo os princípios, renunciar a dogmas e procurar novos rumos, uma vez que só isso nos poderá ajudar a termos uma justiça melhor. Os princípios do processo civil, uma disciplina recente, permite uma releitura, sem prejuízo da justiça que se pretende alcançar. 57 JOÃO CARLOS TRINDADE, Constituição e Reforma da Justiça: um projecto por realizar, cit., p. 253.